Virologia
Tive febre por pensar muito. Racionalidade é
agente infeccioso que se multiplica no interior de algo necessariamente
frágil.
Buraco de minhoca na quarta sinfonia do peito
era matéria de falta, estoque de ausências. Semana retrasada, ainda revivia uma
quase insanidade domesticada. Meus braços curtos tocavam elemento palpável:
saudade diluída no olhar, vazada de fora para dentro, não era lágrima, se
tratava de fluído lacrimal constituição de água, lipídios, lisozima, glicose,
ureia, imunoglobulinas.
É mais fácil digerir a cientificidade das coisas do que
colocar para dentro a beleza poética embutida nos grandes sofrimentos do
homem, porém não mais significativo.
Nessa época, eu matava o verme, não o seu
criadouro, a central de reprodução continuava intacta, com suas
paredes impermeáveis. Pensava que era fungo o que me acometia, ou bactéria em proliferação,
vírus aguardando o hospedeiro, protozoário. Tive gosto esquisito de
enfraquecimento por dias, estava indefeso e desarmado.
Meu sistema
imunológico em paralisação, talvez em greve. De vez em quando a defesa do
organismo contra o ataque de invasores externos falha, até os anticorpos recuam
diante de um perigo maior. O que eu tive foi nocivo, uma substância tóxica de
animal peçonhento, mas não era nenhum bicho rastejante, era humano.
A taxonomia diz que somos homo sapiens. Discordava em partes: temos
sentimentos virais, que mais parecem microrganismos, ganham viva ao menor
contato com a estrutura corporal, se revestem de células, tecidos e órgãos.
Apropriavam-se da cadeia metabólica, potencial bioquímico das enzinas em falência
múltipla. Antígeno.
Comprava medicamento na tentativa de cura, me entorpecia de quantidade
exorbitante de moléculas, átomos, nutrientes, vitaminas. Fui uma farmácia ambulante
quando ainda me faltava ter em mãos o diagnóstico da doença, o padecimento da
homeostase em nome da estranheza do que o corpo não reconhecia como seu. Tudo o
que sabia: era humano. Espécie mortal.
Tinha partículas virais, extremamente pequenas, submicroscópicas,
impossíveis a olho nu, adotava nome próprio. Fiquei sabendo mais tarde que a reprodução
dos vírus acontece quando este insere seu material genético no da célula hospedeira,
passando a dominar o metabolismo dela, destruindo-a. Tive um ciclo viral, havia
sido isso.
Vírus, do latim vírus, que significa fluído venenoso ou tóxico. Longe de
um abismo onde se alocar são inertes, ineficazes. Morrem sem que haja algo para
abocanhar, quando já penetrados na epiderme, em contato com a maquinaria das células,
comandando a corrente sanguínea, as funções que garantem a sobrevivência da espécie,
provocam a sua degeneração, encaminha sem atalho para a morte o corpo, a vida.
Meses mais tarde, em delírio febril deitado sobre o leito da cama, com a transição
de uma lágrima perfurando a vista, o vírus me partiu ao meio novamente, desestabilizou-se
em mim as suas duplicações, réplicas de si, procriação de finalidade: me levar
ao caixão antes da loucura. Acreditava que para levar ao túmulo precisava de caixão, acontece que eu estava vazio por dentro, doença me ocupando.
Meu vírus chamava-se amor. Precisava de mim, hospedeiro frágil que em
relação comensal, ou mutualista, se manteve vivo, abriguei outro. Este, ao
contrário, era vivo.
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