O homem que nasceu monstro | Frankenstein | Mary Shelley


Uma das últimas leituras concluídas foi Frankenstein da escritora Mary Shelley, lançado em versão pocket pela editora L± não conhecia a história de Victor Frankenstein, um jovem que ao ingressar nos estudos da ciência em uma universidade, e utilizando como referência diversos outros cientistas, entra em uma busca frenética por responder uma das principais perguntas que o livro traz: é possível criar a vida? 

Victor Frankenstein se debruça exageradamente na hipótese de descobrir os segredos da criação do ser humano, e na possibilidade de ser bem-sucedido em suas investidas cientificas, e como sabemos, o jovem rapaz consegue recriar uma vida em laboratório, de um modo totalmente desumano e cruel, sem realizar qualquer inferência racional das consequências e efeitos que isso poderia trazer, porém quando Victor sente o horror das suas atitudes e a monstruosidade de sua criação, fruto de uma dedicação mais do que desgastante, encontra-se em um abismo de arrependimento eterno, um remorso perceptível em cada página. 


Mary Shelley, autora do romance, escreveu Frankenstein em decorrência de uma aposta realizada por Lord Byron, uma das figuras mais influentes do romantismo e poeta britânico, sugerindo que cada um escrevesse uma história de terror, “cada um de nós vai escrever uma estória de fantasma”; a obra Frankenstein foi originalmente publicada em 1818 quando a autora tinha 20 anos de modo anônimo, pois Mary possuía inúmeros receios de que criticas fossem feitas a respeito de sua criação literária e pelo fato de ser mulher em uma sociedade – ainda hoje – baseada em costumes predominantemente patriarcais. Não me considero uma fã de ficção científica pela quantidade quase rara de leituras que concluo do gênero, porém Mary é considerada a mãe da ficção cientifica, e até hoje Frankenstein serve como referência para diversas outras criações e discussões. 

Várias inspirações a levaram a escrever a obra: na Alemanha, no topo de uma colina das montanhas de Odenwald existe um castelo chamado Frankenstein, que significa “rocha dos francos”, fazendo referência a uma antiga tribo germânica, porém uma das inspirações mais marcantes para a construção da história foi o mito grego de Prometeu, tanto que o título original da obra era Frankenstein: ou Prometeu Moderno. 

Existem diversas versões da história do herói Prometeu, porém em essência ela se baseia em três aspectos fundamentais para a sua compreensão: a criação do ser humano, o roubo do fogo e o castigo eterno; após Zeus ganhar uma batalha travada com os titãs, este pede auxílio para Prometeu ajuda-lo a conceder a criação do homem a partir da argila e da água, porém proibiu que o ser humano pudesse ter conhecimento do fogo, porém Prometeu rouba o fogo do Olimpo e o entrega ao homem, então Zeus, enfurecido, confere a ele um castigo eterno deixando-o acorrentado no topo de um monte com uma águia comendo seu fígado; esta é somente uma das versões do mito. 


Victor Frankenstein brinca com a criação, ditando-se de maneira talvez inconsciente e irracional, como um Deus capacitado de originar um ser humano, desafiando-se a ultrapassar todos os limites estabelecidos ao homem, e as demarcações dos próprios instrumentos da ciência, querendo buscar respostas além do que temos definido como fronteira ética e racional, porém absorve como efeito a tragédia que corrompeu sua paz, tranquilidade e esperança, e que também o distância de todos que amou ao longo da vida. 

Tudo começou com uma pergunta. No filme Matrix, em um diálogo de Neo com Trinity, uma frase marcante se apossou tão naturalmente de mim, e ela diz: “é a pergunta que nos impulsiona, Neo. Foi a pergunta que te trouxe aqui”; o questionamento da nossa realidade, da vida, da existência, as perguntas acerca de quem somos, quais os nossos propósitos, estas não são perguntas atuais; os mitos eram uma forma de explicação do universo, com o surgimento do pensamento racional, as perguntas foram reformuladas, e com os pré-socráticos, houve um redirecionamento para um elemento fundamental que pudesse definir a essência do cosmo. E então, nos deparamos com Sócrates, o filósofo mais influente da filosofia em seu contexto mais amplo, uma figura emblemática que defendeu o questionamento como forma de descontruir verdades fixas e construir novos saberes, usando como base a simples capacidade do ser humano de interrogar, porém até onde é possível questionar, até onde vai o limite da curiosidade. 

Considerando o contexto histórico de criação da obra, tinha-se como marco principal o desenvolvimento da indústria (1° e 2° revolução industrial), espaço de ampliação da tecnologia e da ciência, com descobertas que geraram efeitos polêmicos e contribuíram para mudanças drásticas para a época, como a utilização da energia elétrica e dos combustíveis, máquinas a vapor, invenção do motor, e avanços significativos também no campo da medicina, como a primeira transfusão de sangue realizada de modo escasso, porém bem sucedido; a exploração do campo cientifico e técnico estava permitindo que novos conceitos e concepções viessem à tona, e como toda a criação é um ato inicialmente experimental, a sociedade da época passou por diversas transformações que ecoam até no campo tecnológico, ou ainda se é possível acreditar que o computador, a internet, a clonagem, manipulação genética, biotecnologia, aperfeiçoamento da medicina, surgiram em um passe de mágica? Não, tudo é fruto de um longo processo de evolução. E Frankenstein é um prelúdio quem sabe do nosso próprio futuro. 

Porém é exatamente a partir dessa conquista tão significativa do mundo globalizado, da busca incessante por melhorias e aperfeiçoamentos, em consequência talvez de um mercado consumidor ansioso por se deparar com invenções formidáveis e das tendência de um mundo capitalista de se guiar pela procura do lucro, que precisamos levantar questionamentos do que é a ética dentro da medicina, biologia, física, psicologia, etc. Frankenstein é uma obra publicada em 1818, porém sua temática e a apresentação do seu conteúdo é mais do que atual, é uma reflexão que se perpetuará por todas as próximas gerações; fazendo um paralelo com o cinema, temos uma série da Netflix que retrata perfeitamente o avanço desenfreado da medicina e de manipulações genéticas, Órfã Black, com pressupostos da clonagem e bioética; Black Mirror, que em seus episódios independentes trazer à tona possibilidades trágicas e catastróficas de um universo cada mais tecnológico. 

Ao tentar relacionar os atos grotescos de Victor Frankenstein com as ações já empregadas pelo homem, não é necessário mergulhar unicamente no mundo fantasioso e ficcional da literatura ou cinema; a segunda guerra mundial foi um episódio nefasto por apresentar a imagem de uma figura responsável pelo aniquilamento e destruição de milhões de judeus, atentando este que se deu não somente pelo extermínio em massa, porém pelo fato do nazismo utilizar seres humanos como cobaias em experimentos científicos que fogem totalmente dos “direitos humanos”. 



Frankenstein foi concebido de um modo inquestionavelmente bárbaro e cruel, configurando um horror tão único em uma criação irracional, embora este tenha sido gerado em uma deformidade estranhada, não nasceu uma criatura ruim, aprendeu a ser; ninguém nasce embutido em atitudes nocivas, ou repleto de preconceitos e pré-julgamentos, ou com uma tendência maléfica ou restituído de caráter; como qualquer ser humano, em seus primeiros anos de vida, após a sua criação em laboratório, e o desprezo imediato de Victor, Frankenstein seguiu instintos básicos de sobrevivência, guiado por estímulos incondicionados que geraram respostas naturais e automáticas, a busca por alimento, água para aliviar a sede, procura de abrigo contra o frio. 

Desorientado em absolutamente tudo o que fazia, à medida que foi conhecendo e experimentando o mundo ao qual se encontrava perdido, Frankenstein apropriou-se de um sentimento genuíno de procura por aceitação, acolhimento e uma curiosidade espontânea de ser amado, no entanto sua aparência horrenda e deformada, sua compostura detestável, foi responsável por garantir o afastamento de todos que tentava se aproximar, a sua resposta perante o ódio, preconceito e condenação do ser humano foi único: vingar-se, e principalmente garantir a destruição do seu criador, Victor. 

Se Frankenstein tivesse conhecido em sua primeira vivencia tudo o que precisava para a sobrevivência, além de suprir os estímulos básicos da sua vida, deparar-se com um sentimento natural de apoio e descoberta, com cargas emocionais que garantissem uma apropriação significativa do mundo, se deparado com segurança e incentivo para explorar o universo que se formava ali, ele seria diferente do que foi? 

Seria?

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