Na manhã depois que eu me matei [reflexão]


Texto original por Victória Lellis

Na manhã depois que eu me matei, esquentei o restante da pizza que sobrou da noite passada e tomei um pouco de café ainda deitada na cama. Tentei fazer o meu suco favorito espremendo algumas frutas na jarra, depois arrumei a bagunça, lavei a louça, limpei a manteiga em cima do balcão, e reli todos os lembretes grudados na geladeira. 

Na manhã depois que eu me matei, eu me apaixonei. Mas não foi pelo cara que mora na rua de baixo ou pelo professor de literatura da minha faculdade. Também não foi pelo garoto que sempre me acompanhava até a padaria, ou o moço do ônibus que sempre sorria pra mim. Me apaixonei pela minha mãe quando ela se ajoelhou no meu quarto segurando todos os meus cadernos e rascunhos em suas mãos até elas ficarem vermelhas pelo aperto. Eu me apaixonei pelo meu irmão quando o vi chorando pela primeira vez, ainda tentando desesperadamente acreditar que eu ainda existia. 

Na manhã depois que eu me matei, eu me recordei das vezes em o meu gato costumava se esfregar entre as minhas pernas, e rolar para o meu colo enquanto meu rosto se enchia de lágrimas por algum motivo capaz de me tirar o sono, como se ele pudesse sentir todas as minhas alterações de humor. Mas agora ele vê apenas um vazio no lugar que eu costumava ocupar. 

Na manhã depois que eu me matei, eu caminhei sob o sol quente de dezembro, fui até a casa do vizinho onde sentei no balanço, e deixei que o vento bagunçasse todo o meu cabelo. Arranquei algumas margaridas do jardim e algumas flores que eu não conhecia, espiei através da janela a reação de uma senhora ao ouvir as notícias da minha morte. Senti o cheiro de cigarro que o marido dela fumava e depois o vi preparando a sua medicação diária. 

Na manhã depois que eu me matei, eu assisti ao por-do-sol, inalei a beleza de todas as árvores, porque elas pareciam me chamar para um abraço, e eu pode até ouvi-las dizendo que tudo ficaria bem, observei uma criança levando o seu cachorro pra passear e tomando sorvete ao lado da mãe. Ouvi alguns choros e admirei alguns sorrisos distraídos. 

Na manhã depois que eu me matei, eu achei o caminho de volta para o meu corpo no necrotério, e tentei gritar algumas verdades pra ela, mas eu não consegui. Contei apenas sobre o seu gato, sobre o balanço do vizinho, sobre os rascunhos em seu quarto, e sobre a sua mãe, apesar dela nunca tê-la amado. Eu também contei pra ela sobre o por-do-sol, sobre as margaridas, e sobre a pizza.

Na manhã depois que eu me matei, eu tentei voltar a vida, mas eu não consegui terminar o que comecei. 

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