Quando é o pior que acontece
Sabe, não tem mais esperança.
Caramba, como doí, não é uma dorzinha como
bater o pé na quina da mesa, o dedo contraído no móvel estático do quarto, ser
baleado por pequenas gotas de óleo fervendo na pele enquanto o ovo frita. É
pior. Cada músculo se contraí ao levar um soco, o bandido aparece armado na sua
frente e seu sistema nervoso paralisa, suas pernas oscilam, o gosto ácido da
bile no estômago massacra e devora a lucidez da ação, a resposta iminente não
vem. É mais aterrorizante que a Penicilina G benzatina perfurando o tecido
das nádegas, aquela agulha filha da puta que enfraquece até o mais corajoso dos
homem, líquido feito ferro que faz a pressão cair de instantâneo. Você arranca
sem querer os defeitos da unha, a cutícula exposta do dedo, e tira mais do que
devia, o sangue escorre e pinga, é insuportável, porque você coloca band-aid na
ferida, e o ar para de circular, os poros se contraem, e nada funciona, quando
vê, é câncer que se espalhou sem nem avisar.
As cenas em que o saco plástico grudado a
cabeça da vítima transfigura tanto desespero em formato nojento de sangue
cuspido da boca e do nariz, depois o deitam e despejam água contra o pano
escondido no rosto, seu pulmão indefeso, engolindo líquido em excesso, incapaz
de roubar oxigênio, ou desferir para fora dióxido de carbono, é a respiração da
morte, entrecortada e fulminante. O corpo inteiro molhado de cemitério,
amarrado esperando a foice certeira, o último elemento atômico sendo real
antes de inexistir, a dor tombando sobre si concreto, asfalto, uma rua inteira
massacrando esperança. É pior.
Não saber se algum Deus de
propósito faz, por imaginação saltitante que inventa a contração dolorida
dos músculos com as células repulsando para trás, recuando, precisando
lutar contra a tonelada que te puxa para frente em impulsos únicos.
Difícil morrer e não saber por que a vida liquefaz entre os dedos. É pior.
Como ganhar na megasena e perder o bilhete da aposta, procurar os seis números
sortudos que ficaram registrados na memória, mas desapareceram do papel em
algum esconderijo da casa, imaginando que foi jogado direto no lixo, sem nem
contar despedida, e perceber mais tarde que tudo não passava de um sonho,
invenção do inconsciente desenhando mentira nas sinapses.
Vai querer cortar os pulsos em desgosto,
porém a mão vai tamborilar em movimentos nervosos e repetitivos de
recuo até a tomada de consciência dizer não: você não vai. Não tem fôlego
para riscar de uma vez só uma linha reta na vertical, ou horizontal, profundo o
suficiente para alcançar uma veia, aquela interligada no coração, aorta, não é?
O máximo que vai acontecer é pegar tétano ou infecção em
consequência da ferrugem da lâmina, então depois nenhuma faca vai aliviar
a pressão interna, porque se usar, vai estourar, feito uma bexiga, e bum: irão
chorar debruçados no seu caixão, e as lágrimas não serão líquido, serão vômito,
aquele que sai direto das tripas, do intestino delgado, sei lá o que isso
significa. É pior.
A tecnologia vai avançar tanto, mas tanto,
que até lá vai ser possível ingerir uns comprimidos garganta adentro, e quando
este se dissolver no pé do estômago, e cada célula do corpo respirar
analgésico, seu efeito colateral vai ser o esquecimento. Memórias que
atravessaram o corpo em pequenas navalhas, gigantescos cortes, serão deletadas
como o histórico de sucessivas pesquisas malfeitas que não deram em nada,
e vai começar do zero. Até lá, é pior.
Vai tentar substituir remédio de
gripe por ansiolítico para diminuir ansiedade, ou por droga, quem sabe cannabis
até o seu pulmão morrer asfixiado pela fumaça da tragada.
Mas vai ser pior.
Porque sempre vai ter algo que vai ser
pior, e você sabe disso. O pior vai ter arrastar no asfalto com uma corda no
pescoço, e esmagar os seus ossos contra a calçada, e seu crânio vai sofrer
ruptura, abertura em alguma região do cérebro. Esse pior vai evaporar a paz,
vai te obrigar a andar para longe do estado de tranquilidade e te abduzir para
uma dor um milhão de vezes pior do que enxaqueca, onde não haverá nenhum
remédio para remediar a sensação inumana de que carne está apodrecendo sob
a pele gasta, enrugada pelo picotar da vida. Ela passa tesoura em nós e
fingimos não revidar enquanto tudo se remói nos desesperos noturnos.
Você sabe, não há esperança quando é o pior que acontece. E cada um tem o seu pior, e quando você chega no seu, não há ressoar de desistência ou morfina injetada diretamente na veia que alivie o gosto da morte que fica na boca em meio a vida. Não há nada.
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